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A relação entre democracia e transformação digital mudou as formas de interação entre governos eleitos e sociedade. O direito universal ao voto na maioria dos países foi uma das principais conquistas da Humanidade no século XX, tão ou mais importante para a civilização quanto as principais inovações tecnológicas que permitiram a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento social de grande parcela da população mundial. É emblemático, por exemplo, que, na Suíça, as mulheres só tenham conseguido participar de uma eleição em 1971, depois de muita luta. Ou seja, somente dois anos após o primeiro homem pisar na Lua, as mulheres de um dos países mais desenvolvidos do mundo alcançaram este que é um direito fundamental em qualquer sociedade plenamente civilizada.

Mas, se no século passado, poder participar de uma eleição, independentemente de sexo, raça e condição social, significou um grande avanço, no século XXI, isso é muito pouco.  Como na época de sua concepção, na Grécia Antiga, o exercício da democracia ainda está limitado, na maior parte do mundo, ao momento do voto para a escolha de governantes e legisladores. Um quadro que está mudando com a crescente transformação digital na administração pública.

No início, o conceito de democracia era baseado no poder e na representatividade – como todos sabemos, democracia quer dizer o poder do povo, em contraponto à autocracia, o poder de uma pessoa ou um pequeno grupo  – e o seu exercício se dava de forma unidirecional de baixo para cima. Ou seja, a população escolhia os seus representantes para governar, em seu nome, um país, um estado ou uma cidade. Nesse modelo, que ainda hoje é predominante, os eleitos ganham uma espécie de carta branca, uma procuração, para definir leis e decidir sobre atos administrativos. Essa é uma forma bastante simplificada, ou mesmo simplista, de descrever esse sistema, mas serve para demonstrar a diferença em relação aos novos modelos de democracia que começam a emergir com a transformação digital da administração pública.

O poder e a representatividade ainda são os fundamentos dos regimes democráticos, mas, agora, contam com outros elementos na formação de sua base, que funcionam como contrapesos e medidas reguladoras e impedem que um governante eleito de forma legítima governe apenas para a maioria que o escolheu ou, no pior dos cenários, abuse da autoridade que lhe foi outorgada pelo eleitor. A História nos traz vários exemplos de como um grupo eleito transformou o regime em uma ditadura, como ocorreu com os nazistas, na Alemanha em 1933, que restringiram as liberdades individuais e fecharam o parlamento, com o apoio popular, logo após chegarem ao poder.

A democracia moderna é baseada na participação contínua e na liberdade de acesso às decisões administrativas, aos debates legislativos e aos serviços públicos. Isso significa que a democracia moderna é um sistema de mão dupla e de exercício permanente, não limitado a períodos eleitorais.

Mão dupla, porque, após eleito, o governo deve atender com seus serviços a toda população, inclusive as minorias, de forma universal e prestar contas à sociedade por meio de seus canais de transparência. E de exercício permanente, porque a população – e não apenas os eleitores – agora têm à disposição inúmeras ferramentas que permitem a fiscalização, o monitoramento, a cobrança por contato direto com os eleitos, e, principalmente o acesso aos serviços públicos.

Este modelo de democracia é resultado direto da transformação digital da administração pública e, portanto, o seu nível de aplicação depende diretamente da capacidade tecnológica e da vontade política de um governo em investir em inovação e em ferramentas que o viabilizem. Dessa forma, podemos dizer que, no mundo, hoje existem democracias em diferentes níveis de evolução e, mesmo dentro de cada país – ou governo –, há diferentes níveis de democracia em seus diversos serviços e esferas administrativas.

Um exemplo de como diferentes níveis de democracia convivem na mesma esfera administrativa, em um mesmo governo, é a evolução do sistema de cobrança do Imposto de Renda da Pessoa Física no Brasil. A digitalização da declaração do IRPF começou em 1991, com a possibilidade de preenchimento do formulário em um computador e a entrega por meio de disquetes. Em 1997, a declaração passou a ser entregue pela internet, sem que o contribuinte precisasse sair de sua casa ou escritório para enviar o formulário. A cada ano, mais e mais contribuintes passaram a usar os meios eletrônicos para fazer a sua declaração, que hoje, é totalmente digital.

A simplificação do processo fez com que cada vez mais contribuintes declarassem o IRPF. A isso eu chamo de democracia de mão única e de cima para baixo: o governo democratizou o acesso da parcela da população que recolhe imposto de renda na fonte e, embora isso facilitasse a devolução do imposto cobrado a mais durante o exercício anterior, o maior beneficiado sempre foi a máquina arrecadadora.

Somente quase vinte anos depois de iniciada a digitalização da arrecadação do imposto de renda é que se iniciou o processo de democratização da fiscalização da aplicação do dinheiro arrecadado pela administração pública. A Lei de Acesso à Informação determinou a criação de portais de transparência em todos os níveis da administração pública e definiu as obrigações das organizações públicas para atender ao direito que todos os brasileiros e brasileiras têm de conhecer a aplicação dos recursos públicos.

Ainda há muito o que se fazer para que a população possa realmente não apenas acessar os dados sobre o destino de seus impostos, mas compreender esses números. Mas já é possível dizer que hoje o Brasil caminha firmemente rumo a uma democracia de mão dupla nessa área. De cima para baixo há um sistema que permite melhorar e ampliar ao maior número de contribuintes as ferramentas de fiscalização e arrecadação; e, de baixo para cima, há cada vez mais ferramentas acessíveis ao cidadão para que a população como um todo – e não apenas os contribuintes diretos – fiscalizem e acompanhem a aplicação do dinheiro público arrecadado por impostos.

Em países como o nosso vizinho Uruguai, a distante Estônia e a superpopulosa Índia, há vários exemplos de como o uso de tecnologias de governo fizeram a transformação digital da democracia.

Na Estônia, a população conta com uma identidade digital desde 2001. O país foi além da substituição do documento físico em papel por uma imagem ou documento virtual. A identidade digital garante acesso à quase totalidade dos serviços públicos e, ao reduzir a burocracia, também permite a inclusão econômica da população. Com a identidade digital, quem vive na Estônia pode acessar a sua receita médica, emitida apenas em meio digital, em qualquer farmácia, por exemplo. Com o mesmo documento, é possível abrir uma empresa em 15 minutos.

No Uruguai, a identidade digital começou a ser distribuída também no início dos anos 2000 e hoje dá acesso a todos os serviços de governo, embora muitos deles ainda não possam ser finalizados por esse sistema.

Na Índia, a identidade digital está sendo utilizada para permitir que a totalidade da população economicamente ativa tenha acesso ao sistema bancário. A meta do país é acabar com e emissão de dinheiro em papel moeda e combater desde as fraudes financeiras até a exploração de mão-de-obra.

O Brasil ainda não conta com um programa centralizado para promover a inclusão digital com o objetivo de reduzir a burocracia em todas as esferas administrativas e promover o acesso universal da população a serviços, à participação nas decisões e aos sistemas de transparência e de fiscalização do poder público, mas a crescente digitalização da administração pública já possibilita a transformação das relações entre cidadãos e governos.

Os sistemas de fiscalização e controle de obras utilizados por diferentes administrações são um exemplo. A digitalização dos diferentes processos que envolvem a execução de uma obra – desde a licitação, passando pelas medições, auditagens, compras e contratações de serviços – favorece o acompanhamento da aplicação de recursos, não apenas pelos sistemas de controle interno e externo, mas pela população em geral.

De forma direta, os dados relativos à determinada obra são inseridos automaticamente nos sistemas que alimentam as ferramentas de fiscalização e controle oficiais. De forma indireta, a redução da burocracia agiliza os processos e contribui para aumentar a agilidade na execução dos serviços. Uma das principais formas de burlar a fiscalização de uma obra por parte da população é a demora na sua conclusão e os inúmeros aditivos de contrato decorrentes desse atraso.

Assim, podemos dizer que a participação na administração pública, com a digitalização das tecnologias e sistemas de governo, muitas vezes se dá de forma inconsciente. Ou seja, o cidadão interfere nos rumos de sua cidade, simplesmente por fazer parte de um sistema ou usar os serviços ofertados. Quando uma prefeitura facilita o acesso de segmentos específicos da população a determinados serviços, a adesão desse público contribui de forma efetiva para ampliar o nível de democratização da administração pública. Desburocratizar, por meio de um sistema digital, a emissão dos documentos necessários para que um idoso utilize gratuitamente o transporte público ou até mesmo as vagas de estacionamento reservadas automaticamente gera dados que podem orientar a administração para as demandas específicas dessa faixa demográfica em outras áreas, como a saúde. O mesmo ocorre com os demais segmentos populacionais com necessidades específicas.

O uso de inteligência artificial para o controle do tráfego é outro exemplo de como, nas democracias atingidas pela transformação digital, o dia-a-dia de uma cidade já possibilita ao cidadão interferir no desenvolvimento de seu município: o sistema não gera informações apenas para melhorar o fluxo de veículos em tempo real, mas, também, a longo prazo, fornece dados suficientes para orientar o investimento em obras viárias, na definição do sentido do trânsito nas ruas em determinada região e até mesmo na gestão do transporte público.

É claro que a geração desses dados, por parte do público, também pode oferecer os riscos à privacidade e até levar ao abuso do controle do Estado sobre a vida do cidadão. Para isso, além da regulamentação legal sobre o uso desses dados, como a recente Lei de Proteção de Dados Pessoais, é preciso, também, implementar medidas que preparem as pessoas para o pleno exercício de sua cidadania numa sociedade cada vez mais digital. Nos países que lideram a transformação digital da democracia, a educação digital da população, com noções básicas de programação e linguagem computacional desde os níveis fundamentais do ensino, ocorre simultaneamente à digitalização das tecnologias de governo.

Em resumo, a transformação digital da gestão pública é o primeiro passo para a transformação da democracia baseada exclusivamente no voto e no sistema político e eleitoral para uma democracia realmente participativa. Isso não significa despolitizar o processo democrático, mas tornar a democracia mais próxima do cotidiano das pessoas e não apenas um evento periódico, com data e hora certas para acontecer.

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